Gêmeos idênticos, Lucas e Luiz têm semelhanças que vão além da cor da pele, traços do rosto e estatura. Ambos dedicam nada menos que dez horas do dia a uma atividade precária, insalubre, proibida e sem boas perspectivas para o futuro: o trabalho infantil.
Moradores de um bairro da periferia, os irmãos que abandonaram a escola e vendem pipoca e garrafinhas de água em sinais de trânsito são o retrato da mão de obra mirim de Belo Horizonte.
Pesquisa inédita realizada na capital traça o perfil dos jovens que trocaram a infância e a adolescência por dinheiro.
No Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, lembrado hoje, dados preliminares do levantamento apontam que mais de 70% da faixa etária dos menores na labuta têm entre 16 e 17 anos. A maioria é formada por meninos que atuam como ambulantes em locais de grande movimentação de pessoas nas regiões Centro-Sul, Leste, Oeste e Noroeste.
“Paramos de estudar este ano e agora a gente fica na rua, vendendo”, conta Luiz. Num dia bom, acrescenta o irmão Lucas, dá para ganhar uns R$ 50. “Com a grana ajudamos em casa”, diz. Os dois moram com um tio e evitam falar do paradeiro dos pais.
A rotina no improvisado trampo começa às 8h e só termina depois das 18h. Quase não sentam para descansar e costuram a pé entre os carros para anunciar a venda das mercadorias. Para se alimentar, compram salgados e iogurtes em supermercados próximos ao corredor de tráfego. “Se chega a polícia ou o fiscal, a gente sai vazado”, conta Lucas.
Presença feminina
O diagnóstico do trabalho infantil em BH também aponta forte presença feminina. Elas estão mais presentes nos trabalhos domésticos, mas ocupam cada vez mais o comércio ambulante.
À noite, em rápido giro por regiões da capital cercada por bares e restaurantes, não é difícil encontrar meninas vendendo flores, balas e amendoim. “Estão aqui diariamente. Algumas vezes, os pais ficam de longe só observando e pegando o dinheiro”, revela o garçom de um boteco do bairro de Lourdes.
Só em agosto
O mapeamento começou a ser elaborado em 2015. A previsão de conclusão é para agosto deste ano. “Para lidar com um problema tão grave é preciso conhecer a fundo a realidade desses jovens”, afirma o presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Marcelo Moreira de Oliveira.
Além do diagnóstico, o órgão elabora em conjunto com governos e ONGs um plano municipal de combate à irregularidade. “A proposta visa prevenir, enfrentar e proteger o adolescente trabalhador. As ações serão de curto, médio e longo prazos”.
Abordagem
Marcelo Oliveira antecipa que, dentre as principais medidas, está a criação de uma equipe específica para abordar os jovens nos serviços ilegais. “As ações serão continuadas, todas orientadas pelo diagnóstico e referenciadas pelos princípios e diretrizes previstos em tratados e convenções internacionais sobre o trabalho infantil, na Consolidação das Leis Trabalhistas e no Estatuto da Criança e do Adolescente”.
Do insumo ao consumo, cadeia produtiva alimenta atividade
A pipoca vendida por Lucas, a garrafinha de água do Luiz e as flores de Amanda são resultado de uma cadeia produtiva que alimenta o trabalho infantil. O conjunto de atividades – dos insumos básicos ao consumo, incluindo distribuição e comercialização – será o mote de uma campanha de conscientização da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Atuando há 18 anos como juíza, a diretora de Diretos Humanos e Cidadania da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Noemia Porto, diz que o combate à mão de obra mirim na cadeia produtiva precisa ganhar notoriedade. Para ela, as empresas devem monitorar toda a cadeia. “Muitas vezes, a produção de uma camisa que se compra no shopping pode esconder um trabalho precário e ilegal, resultado da exploração de crianças”.
Dentre as soluções que têm sido discutidas, Noemia destaca a criação de uma espécie de “selo verde” para garantir uma cadeia produtiva “limpa”. “As famílias precisam se sentir responsáveis. O trabalho não ensina, ele explora. É irregular, ilícito e traz prejuízos”, afirma. Para ela, faltam políticas públicas e fiscalização.
Jovem aprendiz
Coordenadora do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil da OIT, Maria Cláudia Falcão chama a atenção para outro desafio. Colocar os adolescentes na escola não basta. Segundo ela, capacitar e preparar os jovens para o mercado nunca foi tão necessário. “Muitos meninos querem trabalhar. A aprendizagem é a saída para os maiores de 14 anos. Cabe a nós assegurar esse ofício protegido, de maneira segura”, afirma Maria Cláudia.
A coordenadora frisa que o “trabalho infantil não é mais sinônimo de extrema pobreza”. Análises da OIT mostram aumento dos casos em famílias cujas rendas ultrapassam R$ 415. “Para os núcleos mais pobres, existe o benefício do Bolsa Família, desde que eles estejam na escola. Porém, para as pessoas com uma renda um pouco maior, o filho acaba trabalhando na agricultura, na oficina mecânica do pai”.
Maria Cláudia também destaca a necessidade de se repensar políticas públicas capazes de atender a esses meninos. “Mais de 80% dos jovens que trabalham têm mais de 14 anos. O desafio é investir e potencializar a inserção deles no mercado de trabalho, de forma protegida. Claro, o momento é ruim, pois se discute crise econômica. Mas não há crise que justifique o trabalho infantil”.
Acolhimento e orientação ajudam a dar a volta por cima
Largar o ofício proibido não é tarefa fácil, destacam especialistas. O poder público e a família têm papel fundamental para ajudar os jovens a dar a volta por cima e vislumbrar novos horizontes, como aconteceu com Pedro Henrique Gonçalves Neto, de 19 anos.
Ele lembra a reviravolta na vida após trabalhar como vendedor, ser reprovado na escola, abandonar os estudos e fazer bicos na rua. Aos 12 anos, ajudava um parente numa loja de queijos, no centro de BH. Lá, permaneceu por pouco mais de um ano até a fiscalização multar o estabelecimento.
Desmotivado no colégio, começou a ganhar uns trocados carregando material de construção. “Deixava de ir à aula para trabalhar e acabei levando bomba”, conta. Inconformada, a mãe dele, Maria Aparecida, fez de tudo para mudar a situação. “Ela foi minha maior incentivadora para voltar a estudar e ir para o Cras (Centro de Referência da Assistência Social)”.
No espaço, Pedro Henrique fez cursos, como o de informática e, depois, participou de projetos para inclusão no mercado de trabalho. “Conclui o 3° ano e comecei a trabalhar”. Atualmente, ele está no segundo emprego de carteira assinada, em um restaurante, e projeta novos desafios. “Quero fazer faculdade, estudar gastronomia”.
Nos últimos seis anos, 4.526 jovens foram atendidos pela Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social. Segundo a psicóloga e analista de políticas públicas do Núcleo de Gestão do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil da secretaria, Ana Paula Guimarães, os jovens e as famílias são acompanhados em variados serviços. O grupo é inserido em programas sociais e de transferência de renda.
Conforme ela, as ações desenvolvidas visam superar as violações de direitos e prevenir o fenômeno. Eles também são incluídos em programas de qualificação profissional. Para ela, o maior desafio é o esclarecimento, a sensibilização e a conscientização da sociedade para denunciar as atividades ilegais e não contribuir com a manutenção das mesmas.
Fonte: Renato Fonseca/Hoje em dia – Foto: Flávio Tavares